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O que escraviza um homem? Jesus disse aos fariseus (João 8) que o pecado e a descrença escravizam e são a escravidão. O contexto é importante, pois os judeus que o ouviam, os principais e mais religiosos da época, se consideravam livres. Basicamente o argumento era que como filhos de Abraão eles jamais poderiam ser considerados escravos, muito menos do pecado. Uma informação que nos intriga é que os tais já haviam declarado crer em Jesus (8.30). Parece que o problema da falsa crença não é privilégio só do nosso tempo.
Crer em Jesus não é só dedicar atenção ao que Ele fala e, descolando outras partes do seu discurso, acreditar somente ou mais primordialmente naquelas partes que não nos contradizem em algum nível. Jesus sabia que não havia crença verdadeira, apenas concordaram com o que ele havia dito naquele momento – não com a sua mensagem como um todo.
Até aquele momento Jesus havia dito que estava ali para fazer a vontade daquele que o enviou, que é verdadeiro. No próprio verso 27 diz que eles tinham um entendimento errado porque não compreenderam completamente o que estava sendo ensinado por Jesus. Mais uma prova de que estavam crendo falsamente, que no final das contas é apenas uma forma de crer em si mesmo.
O verso 31 mostra que Jesus ainda iria aprofundar o seu ensino até chegar ao ponto onde se revelaria a ausência da fé verdadeira, aquela que não seleciona no que crer e no que não crer a respeito do ensino de Jesus. Ao começar o Senhor Jesus a asseverar que era na sua Palavra que os que cressem deveriam “permanecer” para que de fato dessem provas de que são seus discípulos, e assim por essa verdade seriam libertos da escravidão do pecado, os ânimos se moveram para a dúvida e não mais para a crença. O que era crença virou descrença e planos de assassinato. O verso 32 foi a derradeira “par de cal” que faltava para tudo se revelar.
O famoso e celebrado verso 32 assegura que conhecendo a verdade, a verdade liberta. Não há meias palavras quanto a isso. Os judeus se perguntaram: “Qual verdade é desconhecida por nós?” afinal, eles eram os guardiões dos oráculos de Deus (Rm 3.2). E insistiram: “De que escravidão precisamos ser libertos?”. Eis uma cegueira orgulhosa, pois ainda que não entendessem espiritualmente o ponto de Jesus, o fato era que os judeus estavam sob o jugo dos romanos e passariam um longo tempo sob ele, e antes passaram séculos sob o domínio de gregos, medo-persas e babilônios. Tão clara é a verdade sobre isso que o messias era esperado pelos judeus a partir de uma errônea esperança de libertação política do jugo dos estrangeiros.
Entristece-me constatar que essas duas perguntas revelam a descrença velada dos corações diante da Verdade. Imagino que se perguntassem a um judeu da época de Jesus se ele conhecia, entendia e concordava com a verdade a resposta seria um “claro que sim”. Jesus não concordou e nem concorda hoje com um “claro que sim” se não estiver acompanhado de um vida completamente imersa nEle. Quem não crer em Cristo, permanecendo em sua Palavra sem reservas, como um verdadeiro discípulo da Verdade, não pode dizer “claro que sim”.
A indignação parece ter tomado conta dos corações dos judeus, pois ainda que dissessem que Jesus tinha alguma razão no que falava anteriormente, não estava apresentando ensinamentos aceitáveis agora. Nenhum filho de Abraão precisa da verdade e da libertação, pois eles já tinham as duas coisas – responderam eles (8.33). Jesus ensinou um princípio que começa do maior e vai para o menor: todos os homens são pecadores, logo todos precisam de libertação para serem redimidos do efeito devastador do pecado – a morte – pois todos são escravos do pecado se não forem libertados.
Como ser, então, redimido? Eis a pergunta que surge na coração dos sedentos ao ouvirem as Palavras de Jesus. No coração dos ímpios apenas lateja o ceticismo. Na cabeça de um sábio montado sobre os ombros da ignorância, o que martela em sua consciência é que a Palavra de Jesus não confere com a realidade, com a verdade, com o que ele concorda – ou seja – não dá para aceitar. A resposta de Jesus é “se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” (8.36). A remissão do pecado – a libertação das amarras, dos grilhões, das cadeias, das algemas da transgressão e da omissão – só pode se dar pela obra do Espírito Santo e pela comunicação da justiça de Jesus ao pecador.
Essa verdade é tirana aos olhos humanos, pois não há meio termo – só Jesus, só estando totalmente submetido pelo Espírito Santo a Jesus é que o homem pode ser salvo. A verdade é inalcançável aos olhos humanos, pois ela não abre exceções. A verdade é intolerante, pois não há verdades (no plural). Jesus é o único caminho. Jesus é a única verdade. Jesus é a única vida. Verdade mais tirânica do que essa ao coração humano eu desconheço. A verdade de um único caminho que leva a Deus não se coaduna com os caminhos que os homens constroem para si (há caminhos que aos homens que parecem ser bons… Sl 16.25).
Jesus agora nos informa a invariável reação dos que escolhem o que crer das Palavras de Deus: “Procurais matar-me, porque minha palavra não está em vós.” (8.37) (notem que a intenção de matar está ligada consequentemente ao fato de não serem a habitação da Palavra). De quem mais se esperaria, senão dos judeus, a submissão total, irrestrita e sem reservas às palavras do Messias? Ora, é claro, dos filhos de Abraão! Como verdadeiros filhos do pai da fé, a fé nas Palavras de Jesus era a reação mais esperada, só que por parte de quem não conhece os corações segundo o ensino da Palavra (Is 53.1; Jr 17.9-10). Jesus os conhecia e sabia muito bem que neles havia intentos de morte por causa do vazio da Palavra neles.
A ausência da crença em Jesus, que é o mesmo que a descrença na Palavra, é sinal de que as coisas terrenas e as ideias/crenças humanas fazem mais sentido (8.38). O fato de serem filhos de Abraão pela constatação de um exame científico não os faz realmente filhos naquilo que mais importa – filhos na herança da fé. Se as obras da fé que aparecem em Abraão aparecessem nos judeus ficaria provado que eram de fato filhos de Abraão. No entanto, contrariando a ordem de Deus Pai e do Filho de Deus de que deveriam crer, os que antes (8.30) pareciam crer, agora querem o matar (8.40) e assim declaram preferir a escravidão e a descrença.
Filhos de Abraão, então? Não. Ora, filhos de Deus, portanto? Não, sois filhos de outro pai – assim disse Jesus – sois filhos do diabo (8.44). Se não fosse verdade, os judeus haveriam de amar (obedecer aos mandamentos – Jo 14) a Jesus e o seu dia – o dia da sua revelação (como Simão que se alegrou por tê-lo visto – Lc 2.25-35). Quando Jesus veio ao mundo, Herodes quis o mesmo que esses judeus queriam naquele momento – matar o Messias por causa da Verdade. Herodes queria continuar na cadeira de Davi (Mt 2) e os líderes judeus na de Moisés (Mt 23.2). O assassinato, a rejeição, a descrença são o contrário do amor pelo Messias, da recepção calorosa de Jesus e da crença verdadeira na Verdade.
A Verdade pregada por Jesus era incompreensível? Sim! Para quem? Jesus, assim como foi no chamado de Isaías (Is 6), pregava para que a mensagem pudesse ser entendida e crida apenas por quem fosse eleito/predestinado (Mt 13.10-17). Como Paulo bem ensinou, se a mensagem da Verdade não é compreendida e crida, é para os que se perdem que é assim (1Co 1.18; 2Co 4.3). A incapacidade de ouvir, entender e crer no Evangelho, já fora ensinado, se dá também pela cegueira que satanás exerce sobre o entendimento dos incrédulos (8.43; 2Co 4.4). Por certo, os Filhos de Abraão, assim como ele, receberam a dádiva de ouvir, entender e crer (atender) ao chamado de Deus (Gn 12).
No verso 44 se apresenta um contraste entre verdade e mentira como partes de uma realidade em que a verdade é Jesus e a mentira é satanás. Quando alguém se põe descrente frente à Palavra de Jesus, não se submetendo como discípulo, a “tirania implacável” da Verdade logo o qualifica como filho do diabo, e o arremessa para as garras da ‘endemonização’ (não podeis servir a dois senhores), da mentira, da incredulidade, da condenação e da libertinagem.
Portanto, estar na Verdade é uma dádiva do Espírito Santo que só é recebida ouvindo, entendendo e crendo na Palavra de Jesus sem reservas ou sem fazer escolhas no que crer ou não – é tudo ou nada. Não nos surpreende, então, perceber nesse diálogo que a dura e severa Verdade pune cabalmente os incrédulos (que sendo incrédulos não podem ser de verdade os filhos de Abraão), pois eles não creem que Jesus diz a verdade e por isso não creem que Ele é a própria Verdade. Conhecer e crer na verdade é, inconfundivelmente, um dom. Ficar do outro lado dessa realidade é trevas e mentira.
Uma constatação que nos faz refletir é: nem mesmo a tão severa ética e moralismos desses judeus puderam garantir a eles a crença, a confiança, a liberdade; a entrega da vida à Verdade que liberta – Jesus, o Cristo. O moralismo é uma severa prisão da mente auto-enganada pelos méritos.
Quem é de Deus, quem é da verdade, quem é ouvinte de Deus? Aquele que ouve a sua Palavra sem reservas, ainda que com lutas para se submeter a ela. O que aterroriza o coração dos ímpios disfarçados de crentes? “Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso, não me dais ouvidos, porque não sois de Deus.” E aí parafraseio o verso seguinte: Sois do diabo, porque na medida em que dizeis que falo da parte do diabo, afirmais também que as Palavras de Deus devem ser rejeitadas, odiadas, como se do diabo fossem. Que prisão é o moralismo… que prisão.
O que é uma escravidão nessa vida? Escravidão, a mais terrível escravidão, é aquela em que a mente, o coração e as forças interiores do homem estão comprometidas com seu autoengano. Ele rejeita, odeia, assassina o que vem de Cristo como se do diabo fosse e propala que faz isso porque é de Deus e filho de Abraão. Ser filho de Abraão de nada lhe servirá, se não crer em Jesus que é o mesmo que crer em todo o seu ensino.
Jesus é a verdade? Sim, Ele é a expressão exata do Ser de Deus. Ele é o Filho de Deus, e de maneira perfeita e absoluta é o que afirma ser e o Pai testifica também disso (Mt 3.17; 17.5; 2Pe 1.17; Jo 8.26, 28-29). Toda a fonte da vida, todo o significado da existência, toda a finalidade do universo e tudo o que precisamos está em Jesus Cristo –– essa é a verdade na qual Abraão creu e os seus filhos creem (ele viu o dia de Cristo e se regozijou – 8.56).