GUERRA LINGUÍSTICA – BABEL MODERNA

Por Wallas Pinheiro

Quando em Gênesis 11 Deus confunde a língua dos homens fica evidente que Deus pode julgar a partir da não compreensão do que se é dito. Com frequência estamos acostumados a ver os julgamentos de Deus por meio de “espada, juízo, peste ou fome” (2 Cr 20.9); não parece ser natural que Deus julgue o mundo por meio de uma confusão linguística, mas é justamente isso que é confirmado não somente pelo texto de Gênesis 11, mas também em Deuteronômio 28.49, Isaías 28.11, 1 Co 14.21.

A confusão linguística é característica de julgamento, de abandono divino e de crise. Por outro lado, a compreensão linguística é sinal de bênção de Deus, como fica evidenciado em Atos 2.4-11 e 10.46. “Falar a mesma língua” é evidência de que Deus está agindo no meio de um povo, mas a confusão desta língua é prova de desvio humano.

Ao observar isso e comparar com o presente momento, numa análise superficial, tudo parece apontar para uma bênção de Deus sobre o mundo (em especial o Ocidente), afinal, todos conseguem compreender a língua de todos. O nível de comunicação moderno tem sido aumentado e aprofundado com a inserção de IA’s (Inteligências Artificiais) e de tradução simultânea. Mas essa análise escapa à profundidade do julgamento de Deus.

Em Gênesis 11 vemos Deus literalmente criar línguas inexistentes anteriormente, com modelos gramaticais, sintaxes e semânticas de famílias diferentes. Mas não é isso que ocorre posteriormente. A promessa de julgamento em Deuteronômio é de Deus usar uma língua que já existe para julgar um povo e, no caso de 1ª Coríntios, é de usar até mesmo línguas conhecidas, mas por meio de outro povo, para que o julgamento seja estabelecido.

Onde reside a confusão? Em Gênesis 11, está no afastamento da língua original e primeira que unia todos; em Deuteronômio está no povo cuja língua não se entende; em 1ª Coríntios está simplesmente no fato de se falar outra língua – independente da compreensão ou não. A pergunta que pode ser feita não é se atualmente lidamos com o surgimento de línguas novas ou de povos estrangeiros em nível absolutamente desconhecido. Mas se as línguas conhecidas não são, elas mesmas, sinal de julgamento por se afastarem ou se aproximarem em algum sentido dos princípios bíblicos.

É importante delinear que existem níveis em que é natural que palavras mudem de sentido por causa do seu uso e afastamento temporal da origem do termo. Isso ocorre o tempo todo. Palavras novas surgem significando coisas que antes não eram muito bem entendidas. “União Hipostática”, “Trindade”, “Unio Personalis”, são coisas que estão na Escritura, mas não encontram termos nela. A necessidade de sistematizar e organizar as ideias as fez essenciais, porém, não violam o texto bíblico. De outro modo é a categorização de crimes, pecados e males – que é o ponto que queremos chegar.

Termos como Trindade algumas vezes até existem com um sentido ruim em alguma língua, já significando algo como “três deuses”, ao invés de um Deus em três pessoas, mas a pregação costumeira geralmente corrige esse tipo de uso indevido da língua. Porém, como fazer as pessoas compreenderem que matar tanto homem quanto mulher é classificado, nas Escrituras, como “assassinato” e merece exatamente a mesma punição final, quando existe atualmente um crime chamado “feminicídio”? Ou, como explicar para uma pessoa que nas Escrituras não existe um pecado chamado “racismo”, mas existe um que se chama “orgulho” que, enquanto não for manifesto por meio de algum ato de injustiça, só pode ser punido diretamente por Deus?

Onde se situa, então, a nossa confusão linguística? Ela está em uma série de criações de pecados cujos sentidos não se encontram na Escritura ou, caso se encontrem, os sentidos da Escritura são completos, e os sentidos modernos são parciais – o que naturalmente causa, na prática da justiça, parcialidade.

Alguns podem questionar a essa altura que novas palavras servem tanto quanto novas leis, para casos específicos novos. Mas esse modo de pensar possui dois problemas:

1 – Não considera a amplitude da lei. Um estudo nos Dez mandamentos deixa isso claro e evidente. A partir de somente dez mandamentos, toda a lei é estabelecida e tudo o que é justo ou injusto. Pecados contra Deus (do 1º ao 4º), pecados contra autoridades (do 1º ao 5º), pecados contra a vida (6º), casamento (7º), propriedade (8º), honra (9º) e, de todos os dez, apenas o décimo não possui pena aplicável por autoridades civis. Ora, se a partir de 10 mandamentos temos tudo o que uma lei pode fornecer, por que criar novas categorias de palavras para denominar pecados que já estavam passíveis de punição se se enquadrassem nos pecados expostos nas Escrituras?

2 – Não há novas leis. Toda “lei nova” é, na realidade, a parcialização de uma lei maior, apenas aplicando-a a um grupo de pessoas ou contexto[1]. Nisto se compreende que a essência da lei não passa por alteração, mas somente compartimentação – o que, em geral, também causa injustiça.

É evidente que a compreensão linguística está tão atrelada à questão jurídica, que a distorção da primeira causa efeitos na segunda, de modo que o julgamento injusto humano torna-se, em um nível posterior, a última consequência do julgamento de Deus sobre o homem a partir da linguagem.

O Cristianismo ceder à mudança linguística é evidência de que ele perdeu seu referente básico, encontrado nas Escrituras, e que deveria nortear a compreensão das linguagens humanas. Este não é o momento para ceder à cultura, mas de transformá-la e[2], se ela resistir a isso, o Cristianismo não deve se reinventar, mas manter a mesma verdade que sempre sustentou.

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] HOPPE, Hans-Hermann. Democracia, o deus que falhou: A economia e a política da monarquia,da democracia e da ordem natural. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.

[2] Atualmente há dois movimentos gêmeos dentro do meio reformado que cedem à cultura: o neocalvinismo e o “novo” calvinismo. Poder-se-ia dizer que o neocalvinismo é um pouco mais conservador, e é mais próximo de um referencial teórico bíblico. Por outro lado, o novo calvinismo é menos apegado à história da igreja e extremamente ligado aos problemas sociais, de modo que acaba por ceder aos conceitos sociais vigentes para penetrar a cultura. A reforma calvinista, embora não seja nem “novo” calvinismo e nem neocalvinismo, lida com a cultura de referenciais absolutos, não alteráveis.

Imagem do topo: The Tower of Babel, Александр Михальчук. Domínio Público.

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