A DOUTRINA DA REVELAÇÃO

Por Diác. Wallas Pinheiro

A Doutrina da Revelação Especial nos ensina que as Escrituras são a revelação de Deus, e, por isso, a Bíblia nos diz tudo que precisamos saber de modo essencial; porém, em um sentido mais amplo, o homem não vive sem aspectos revelacionais – que podem vir de investigação científica ou aceitação de alguma autoridade superior –, essas revelações são parte das características centrais de quem o homem é.

A Revelação Bíblica, diante de tantas outras “revelações”, é uma concorrente. Sua afirmação categórica sobre o Estado do Homem em pecado é embaraçosa para todas as outras fontes de iluminação, o que nos força a buscar novas revelações ou distorcer a já existente. Reconhecer que as Escrituras dizem tudo que precisamos é, por isso, o primeiro passo em direção à verdade. Em especial, em relação ao Pecado, as Escrituras sempre foram vivas e eficazes para discernir até mesmo os pensamentos e intenções do coração humano (Hb 4.12).

É óbvio que aqui podem apelar à ideia de que a razão (ou a ciência) é uma ferramenta que mostra a falibilidade das Escrituras como revelação. Além disso, muito se argumenta que não se pode confiar nas Escrituras como ponto de partida porque a afirmação de que ela é uma revelação vem dela mesma. A pergunta – como não vamos nos deter em refutar esse tipo de erro – é a seguinte: com base em quê se afirma que a razão é uma ferramenta suficientemente boa para definir tudo sobre o homem? Para se responder, é usada a própria razão – portanto, não é somente a Bíblia que usa ela mesma como fonte revelacional sobre tudo. Isso é uma característica de qualquer tipo de raciocínio – quer se reconheça como revelação ou não.

Toda essa circularidade é essencial ao pensamento revelacional, porque é impossível apelar à outra revelação acima daquela que consideramos ser a mais elevada[1] – do contrário, essa será a nossa revelação primária[2]. Por isso não nos ateremos a esse problema sobre qual revelação usar, haja vista que todo ser humano tem uma “revelação” da qual parte. Diante disso, seguiremos para o problema que é o nosso foco.

A REVELAÇÃO BÍBLICA E AS PALAVRAS

Tudo o que o homem precisa saber sobre si mesmo se encontra nas Escrituras (2 Tm 3.16, 17), de forma que não há nada de novo sobre o homem que possa ser revelado. Isso implica dizer que as doutrinas mais importantes sobre o homem têm seus termos e nomes provindos da Escritura. Um exemplo disso é o “Pecado”, que recebe esse nome em contraste com a Lei. Em termos práticos, a doutrina do Pecado tem seu nome extraído diretamente das Escrituras.

Dentro dessa categoria (pecado) há vários pecados nomeados. Se é possível haver um novo tipo de transgressão não coberto pelos mais de 2500 anos de história escrita nas Escrituras é questionável. Isso implicaria mudança na natureza humana ou nova revelação; no pior dos casos, um novo deus.

Mesmo que haja novos meios de praticar um determinado pecado (p.ex. pornografia, que pode ser por meio de uma tela – sendo que essa palavra não define pecado, apenas explicita o que se está sendo visto) não significa que há um novo pecado (no caso, lascívia, fornicação e adultério são os três possíveis pecados resumidos no termo). Porém, no exemplo dessa palavra se perde a seriedade do pecado: o termo “adultério” para um casado é muito mais pesado do que “pornografia”. O vocábulo “pornografia”, portanto, apenas fala do meio pelo qual um pecado nos chega (que é o meio gráfico), mas não descreve o pecado (adultério).

Se a revelação de Deus é suficiente sobre todas as coisas, o máximo que podemos fazer é, em primeiro lugar, criar categorias para as doutrinas que já possuem nomes nas escrituras e, em segundo lugar, criar nomes para as doutrinas que não possuem nomes na Escritura (como Trindade, União Hipostática etc.).

As categorias, por exemplo, para os termos que já existem nas Escrituras podem ser: pecados contra Deus e contra o Próximo, pecados mais graves e menos graves, pecados individuais e relacionais etc. Isso tudo pode ajudar no entendimento da natureza do pecado, e compreender como eles se relacionam entre si e como nos atingem. Tais categorias podem ser devidamente deduzidas das Escrituras, e não faremos violência ao texto bíblico por criar esse tipo de organização.

Dito isso, é preciso observar que um idioma se atualiza, contudo, todas as palavras, mesmo que mudem, tendem a manter o sentido original – ou, ainda, há sinônimos. A palavra orgulho, por exemplo, possui “entono” como seu sinônimo, porém, seria inviável seu uso, dado o desconhecimento do seu significado.

Assim, não há uma nova revelação quando há progresso (ou regresso) linguístico. Contudo, a confusão sobre a língua costuma ignorar o fato de que palavras expressam ideias, e ideias são definidas por algum tipo de Revelação – o que nos leva de volta ao início do nosso assunto. As Escrituras lidam com a língua, e o método para sua análise, portanto, precisa ser linguístico. Dizer que há um mero debate de palavras nesse ponto é afirmar que quando as Escrituras possuem um problema doutrinário, há somente uma discussão de palavras e nada mais[3]. Não existe outro modo de avaliar as Escrituras longe dos aspectos idiomáticos e linguísticos em geral – tanto do nosso idioma quanto das línguas nas quais as Escrituras foram escritas.

É importante o modo como Bavinck põe a questão da Revelação em relação ao método de investigação e estudo: “Cada ciência deve tomar sua forma a partir do objeto de sua investigação, pois o método é determinado pelo objeto” (Bavinck, 2016, Cap. 8, 29 par)[R1]. Sendo assim, não se pode aplicar à Revelação de Deus (especialmente em relação ao pecado) um método que não seja coerente com o que a própria Escritura fala sobre o problema em si e, em especial, em relação aos termos; a ciência que estamos usando, por isso, é a “Linguística”. Pode-se debater as localidades das cidades bíblicas, mas não se pode saber os nomes delas sem um debate linguístico prévio e se o nome da localidade da época não foi, durante a história, alterado. Por isso, antes de qualquer tratamento bíblico sobre algo, a definição dos termos acaba precedendo o processo. Assim, na Doutrina do Pecado, temos a revelação de Deus definindo os termos.

A Confissão de Fé de Westminster ainda deixa esse ponto bem claro: ou uma doutrina está expressamente declarada na Escritura ou ela pode ser deduzida dela (CFW I.6). Como proposto, a doutrina do Pecado se encaixa na parte em que ela está expressamente declarada, tendo pouco que se deduzir dela para aplicações específicas; portanto, todas as iniquidades não só têm suas raízes tratadas nas Escrituras, mas têm seus nomes dados pelo próprio Deus, como prova do estabelecimento de Sua Lei.

Porém, qual questionamento nos sobrevém? Mudança na natureza humana? Essa mudança, mesmo que pudesse ter ocorrido, estaria prevista na revelação bíblica, visto que o próprio conhecimento da mudança da natureza humana implicaria uma revelação – o que, também, nos lança para o início da questão e nos faz pressupor ou uma nova revelação ou um novo deus (com capacidade de mudar a natureza humana a ponto de criar novos pecados).

Mas se não forem questões meramente linguísticas e não for mudança na natureza humana o que cria novos pecados? Se uma nova revelação vem, contrária ou que distorce a revelação do Deus verdadeiro, ela não pode ser do mesmo Deus. Isso porque todo novo pecado não é só um novo pecado, mas também uma nova lei. Todos os pecados praticáveis podem ser rastreados até os Dez Mandamentos, contudo, uma mudança sobre o pecado muda a lei. Isso ficará mais claro na medida em que observar como os pecados se relacionam à Lei de Deus.

Mas seria possível haver apenas um enquadramento específico de um pecado maior? De certo modo, toda a Escritura já fez isso, ao considerar que todos os pecados são um tipo de idolatria bem como um tipo de orgulho, porém, mesmo com uma quantidade enorme de palavras dispostas no idioma grego, os apóstolos mantiveram todos os pecados já mencionados no Antigo Testamento, com a atualização apenas linguística (do hebraico para grego) e algumas combinações deles. Pode-se dizer que os pecados biblicamente definidos são indivisíveis e a tentativa de dividi-los não resolve o problema, mas causa mais.

Isso mostra que subdividir pecados nos leva a outro pecado: acepção de pessoas. Todo pecado que não é o todo da Escritura sobre ele, será um pecado parcial e, portanto, jamais tratará o problema inteiro – somente parte, se tratar. Por isso, toda a discussão a seguir sobre pecado não é unicamente uma discussão de palavras, mas sobre como proceder justamente com os outros de forma completa.

Podemos resumir tudo do seguinte modo em relação à origem do pecado e da lei: toda Lei[4] é uma revelação de uma divindade → todo pecado é iniquidade por causa de uma lei → todo novo pecado é uma nova lei → toda nova lei é uma nova revelação → toda nova revelação ou pressupõe mudança na natureza do homem, ou uma mudança para um novo deus.


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] Em Lucas 24.13-35 Jesus ressurreto se encontra com os discípulos e, para nossa surpresa, ele não apela à visão dos discípulos dizendo “estou aqui, diante de vocês”, antes, estando diante deles ressurreto apela para as Escrituras, começando pela Lei e indo pelos profetas (cf. Lc 24.25-27). Não somos nós que apelamos para as Escrituras para avaliar tudo, é o próprio Cristo que, podendo apelar para o fato de os discípulos poderem compreender que Cristo lá está entre eles e, mesmo assim, optou por recorrer às Escrituras para provar que a revelação de Deus é suficiente mesmo acima da aparição direta de Cristo para eles.

[2] Observe, por exemplo, que recorrer a outra fonte para afirmar que a anterior é suficiente em algo, é dizer que essa outra fonte tem a capacidade revelacional básica – e se se perguntar de onde essa revelação primária tirou autoridade para afirmar sua validade sobre a outra fonte, logo se notará que a coisa toda entra em circularidade – se tornando um apelo à autoridade daquela revelação.

[3] Importante observar que toda discussão doutrinária é um debate sobre palavras em algum nível. A definição dos termos é, em si, essencial para se fugir de heresias e erros doutrinários. Uma linguagem imprecisa comunicará uma ideia imprecisa sobre Deus e Seus Mandamentos – por isso, a escolha das palavras não é um mero “probleminha linguístico”, mas pode ser o lugar onde se definirá o erro ou o acerto.

[4] Cabe ressaltar que nem sempre a “lei” se manifesta em aspectos jurídicos; ela pode ter um teor subjetivo, isto é, as pessoas podem se submeter a leis que não necessariamente fazem parte do conjunto de leis de um país. Cristãos viviam desse modo sob o governo romano, por exemplo, pois não se submetiam às leis romanas por causa de uma lei “subjetiva” (a Lei de Deus). Por isso, o tratamento da Lei neste artigo não é somente nos seus aspectos jurídicos, mas também subjetivo.

[R1] BAVINCK, Hermann. A Filosofia da Revelação. 1. ed. Monergismo, 2016.

Imagem do topo: The Tower of Babel, Александр Михальчук. Domínio Público.

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